
É curioso o caminho que o filme vem tomando. A segunda versão do roteiro, que foi contemplada pelo edital da Petrobras, indicava uma narrativa não-linear e um filme de linguagem pop: muita câmera na mão, personagens correndo pela cidade, perseguição, letreiros ultra-coloridos. Hoje, mais de um ano depois dessa versão do roteiro, o curta está tomando um caminho bem diferente.
O tempo não-cronológico e a veia cômica da história continuam, mas a decupagem agora prevê uma câmera bem mais discreta. O espaço da cidade está se tornando tão importante quanto os personagens - tornando-se personagem, quase. Mais que acompanhar pessoas e ressaltar estados emocionais, a câmera observa personagens passando na frente do quadro, gente que entra e sai de cena. Passam os protagonistas, a figuração natural, os carros, as bicicletas, a cidade. As coisas passam, o espaço fica.
Como construir o espaço cinematográfico nesse filme? Talvez numa tentativa de corrigir o que ficou capenga no curta anterior, tenho me preocupado ao extremo com a relação câmera-locação. Depois de uma semana buscando locações com o fotógrafo, reescrevi boa parte do roteiro pensando nos lugares já escolhidos. Estamos ensaiando nos locais de filmagem, tentando encontrar mecânicas de cena que se relacionam intimamente com cada locação.
Algumas seqüências serão filmadas no centro da cidade em horários movimentados, decisão que me preocupa bastante. Num lugar onde o espaço urbano nunca presenciou uma equipe de cinema trabalhando, como as pessoas reagirão a uma câmera nada discreta? Pensando nisso, estamos começando a planejar uma “operação camuflagem”, que nada mais é que reduzir a equipe ao máximo para determinadas situações. Sei que será impossível evitar uma olhadela ou outra para a lente, mas uma relação mais “quente” entre os pedestres e a câmera pode acabar comprometendo algumas cenas.
O último plano do filme, por exemplo, me preocupa bastante. Ele será filmado numa avenida movimentada, em horário de pico. Muitos carros e muitas bicicletas que voltam para casa depois de um dia de trabalho. Nessa imagem, os protagonistas atravessam o quadro pela última vez, dando lugar à movimentação da cidade. Os meninos estarão alegres, mas, quando os letreiros finais entrarem, minha intenção é que o todo do filme provoque algum incômodo ou angústia no público. Se tudo der certo, uma ambiência exagerada de pardais irá ajudar a reforçar esse estranhamento provocado pelo todo, mas, e se todos os ciclistas começarem a olhar para a câmera?
Mesmo diante da impossibilidade de prever o imprevisível, arrisco alguns palpites sobre o efeito da interação câmera X moradores dentro dessa imagem específica:
1. Os olhares dos “bicicleteiros” para a câmera podem contribuir para causar a impressão final por mim desejada, ou seja, os olhares ajudarão a criar uma sensação de estranhamento no espectador.
2. Levando em conta que o ato de encarar a câmera é algo bem manjado desde o início do cinema moderno, os bicicleteiros curiosos, em vez de aumentarem o estranhamento no público, irão enfraquecer a imagem final e, por conseguinte, irão amenizar o impacto do todo. Nesse caso, revelar a existência do dispositivo cinematográfico não contribuiria para o filme, ao contrário: seria como se os olhares da figuração natural dissessem “vejam só, tudo isso que vocês acabaram de ver é uma grande mentira”. O cinema e todas as imagens que derivam dele seriam evocadas na mente do público, coisa que eu, talvez pretensiosamente, não gostaria que acontecesse naquela cena. Nesse caso, revelar o dispositivo, ao invés de criar um impacto no espectador, poderia enfraquecer a imagem e diminuir a potência do todo, evocando uma metalinguagem que se instalaria entre a imagem percebida e o espectador, diminuindo o poder de afetar da imagem e, como conseqüência, o poder de afetar do filme.
Meu dilema nesse último plano:
Tento ocultar a câmera de alguma maneira ou chego no set de coração aberto para o acaso?