quinta-feira, 7 de junho de 2007

Um filme é um corpo?

Tenho a impressão de que, como comentarista de Espinosa, Gilles Deleuze consegue ser mais complicado que o próprio Espinosa. No ano passado, demorei uns 4 meses para ler a “Ética demonstrada à maneira dos geômetras”, a obra mais importante do Seu Benedito (de Espinosa). Apesar do tom seco das quase 500 páginas, a leitura da Ética é bem aprazível. Mesmo sem ter o aparato conceitual pra entender várias passagens, qualquer pessoa é capaz de perceber a enxurrada de sabedoria que percorre o livro. O cara destrincha praticamente todos os afetos de que somos capazes: os afetos tristes, que diminuem nossa potência de agir, e os afetos alegres, que derivam de nossas idéias adequadas sobre o mundo. Nesse livro, Espinosa desmistifica a mecânica da vida, as relações entre as coisas e a relação entre as coisas e Deus, que tem papel de causa primeira. Para Espinosa, o universo não caminha em direção a algo pré-estabelecido (finalismo), mas é efeito de infinitas causas que dependem dessa causa primeira. Tentando resumir, o pressuposto da Ética é mais ou menos este: compreendendo a mecânica da vida, entendendo as leis da natureza que determinam as relações entre as coisas e descobrindo as causas dos afetos que nos percorrem, conseguimos nos tornar seres humanos éticos e livres, evitando sofrimentos desnecessários e atingindo certa alegria de viver. Uma amiga disse que isso (buscar as causas dos afetos) é o que se tenta fazer em psicoterapia, mas eu não entendo nada de psicanálise. Tem gente que faz um paralelo entre o pensamento de Espinosa e o Budismo, mas também não tenho familiaridade com essa religião.

Voltando ao assunto inicial, comprei um livro do Deleuze (Espinosa – Filosofia Prática) há uns 10 meses. O livro tem apenas 130 páginas e até agora não consegui concluir a leitura. Nesse livrinho, Deleuze combina rigor conceitual e muita brevidade de explanação para cada conceito. O fato é que cada parágrafo estava dando um nó na minha cabeça, então ontem resolvi pular o "glossário de conceitos" (que tem umas 80 páginas) e, para minha surpresa, o último capítulo é bem mais acessível. Acessível e inspirador:

“(...) Como Espinosa define um corpo? Um corpo qualquer, Espinosa o define de duas maneiras simultâneas. De um lado, um corpo, por menor que seja, sempre comporta uma infinidade de partículas: são as relações de repouso e de movimento, de velocidades e de lentidões entre partículas que definem um corpo, a individualidade de um corpo. De outro lado, um corpo afeta outros corpos, ou é afetado por outros corpos: é este poder de afetar ou de ser afetado que também define um corpo na sua individualidade. Na aparência, são duas proposições muito simples: uma é cinética, a outra é dinâmica. Contudo, se a gente se instala verdadeiramente no meio dessas proposições, se a gente as vive, é muito mais complicado e a gente se torna então espinosista antes de ter percebido o porquê.

Com efeito, a proposição cinética nos diz que um corpo se define por relações de movimento e de repouso, de lentidão e de velocidade entre partículas. Isto é: ele não se define por uma forma ou por funções. A forma global, a forma específica, as funções orgânicas dependerão das relações de velocidade e de lentidão. Até mesmo o desenvolvimento de uma forma, o fluxo do desenvolvimento de uma forma depende dessas relações, e não o inverso. O importante é conceber a vida, cada individualidade de vida, não como uma forma, ou um desenvolvimento de forma, mas como uma relação complexa entre velocidades diferenciais, entre abrandamento e aceleração de partículas. Uma composição de velocidades e de lentidões num plano de imanência. Acontece também que uma forma musical dependa de uma relação complexa entre velocidades e lentidões das partículas sonoras. Não é apenas uma questão de música, mas de maneira de viver: é pela velocidade e lentidão que a gente desliza entre as coisas, que a gente se conjuga com outra coisa: a gente nunca começa, nunca se recomeça tudo novamente, a gente desliza por entre, se introduz no meio, abraça-se ou se impõe ritmos.

A segunda proposição referente aos corpos nos remete ao poder de afetar e de ser afetado. Não se define um corpo (ou uma alma) por sua forma, nem por seus órgãos ou funções; tampouco se define um corpo como uma substância ou um sujeito. Cada leitor de Espinosa sabe que os corpos e as almas não são para ele nem substâncias nem sujeitos, mas modos. Todavia, se a gente se contentar em pensá-lo teoricamente, não será suficiente. Pois, concretamente, um modo é uma relação complexa de velocidade e lentidão, no corpo, mas também no pensamento. Concretamente, se definirmos os corpos e os pensamentos como poderes de afetar e de ser afetado, muitas coisas mudam. Definiremos um animal, ou um homem, não por sua forma ou por seus órgãos e suas funções, e tampouco como sujeito: nós o definiremos pelos afetos de que ele é capaz.”

Será que um filme é um corpo? É possível conceber um filme mais como um corpo pulsante do que como uma narrativa?

Um comentário:

Anônimo disse...

Muito bom seu post e eu digo que sim, e digo mais, lars von trier faz um cinema do corpo, dreyer tambem... ;) continue por favor...